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Primeiramente leia novamente, o artigo do Professor, no final desta correspondência. Para depois se inteirar do conteúdo desta carta; propague, por favor este E-mail, para podermos defender as verdades sobre o Positivismo.

Prezado Professor Miguel Reale,

Fui considerado em Paris, como um Político e um Religioso Positivista, localizado no Brasil. Vide minha pagina www.doutrinapositivsta.hpg.com.br e a pagina da Associação Internacional Positivista , com sede em Paris - www.multimania.com/clotilde/urls.htm ., devido aos meus artigos e a minha pagina, acima citada.

O Positivismo contraria, tudo que o Senhor aprendeu até hoje. Sendo de uma Faculdade de Direito, já inicia Vossa formação acadêmica, com base no egoísmo humano. Não existe direito no Positivismo; o maior direito é primeiramente conhecer os DEVERES; ou melhor subordinar os direitos aos DEVERES. Vide o meu artigo sobre o direito, direito.doc Nos direitos se discute, nos DEVERES se Cumpre - Para citar um militar brasileiro - fora Benjamin Constant -e outros homens cultos e disciplinados - cito aquele com muita sabedoria - General Osório (1808-1879), Patrono do Exército e Herói da Guerra do Paraguai, - disse: " É fácil a missão de comandar homens livres, basta mostrar-lhes o caminho do Dever " - Como exigir teu direito se não conheces teus DEVERES !?

Mas quais são estes DEVERES ? Se desejares, vide meus artigos e livro sobre este tema; caso positivo, lhe enviarei por E- Mail.

Não estou acostumado, perder tempo em discussões acadêmicas, do tipo metafísico, teológico e fetichista, que são as mais corriqueiras atitudes dos acadêmicos, homens que vivem no vazio do mundo pratico; mas como Senhor, com seu cabedal, usou agredir o que não conhece dos originais das Obras de Augusto Comte, pelo o que já demonstrou em vosso artigo, que saiu, no Jornal Estado de São Paulo, em 24/11/2001; dizendo meias verdades; venho lhe alertar, que leia com atenção as Obras de Augusto Comte, nos originais, pois ainda me faltam 20%, para ler, e eu já estou neste Filósofo, a 9 anos, de estudo profundo, com umas 6 a 8 horas por dia ; o francês é do século XIX, a forma de escrever é de difícil compreensão, e necessita de um conhecedor , para explicar certos termos, no início da leitura, para ensinar o sentido dado por Augusto Comte, à certos vocábulos, para que haja lógica, em sua exposição; senão nada será compreendido.

Vou tomar a liberdade de analisar alguns pontos de vosso artigo, visando esclarecer , e não discutir. Posso trocar idéias com quem conhece e que possua em sua biblioteca, a obra completa de Augusto Comte, no original, para esclarecer dúvidas sobre a Doutrina Positivista.

Quanto a democracia, que o Senhor abraça como a saída para manter a discórdia humana, para que os advogados e juizes tenham o que fazer, em grande volume; neste crescente conflito, do estado patológico social em que vivemos; concordo que o Regimen Sociocrático, com a sua Constituição Sociocrática, iriam prejudicar enormemente o " ganha pão" , dos que trabalham no Judiciário e os que Advogam. Segue meu artigo sobre a democracia e o comunismo; pois sou sociocrata; não tenho nada haver com nazismo ou fascismo, ou outras formas belicosas de governo. o Regimen SOCIOCRÁTICO, é um regimen Científico, Industrial, Altruísta e Pacífico.

O Positivismo não é desastroso, nem no plano Religioso nem no Político, isto é, na São Política - Quem prega " O Amor por Princípio, a Ordem por Base e Progresso por Fim; Viver para Outrem e Viver às Claras ; prega desastre ? Vamos analisar só o Viver às Claras, isto é, não mentir. Qual o advogado que não vive da mentira; morre de fome. Qual o Juiz, que não é tapeado pelo advogado ? Qual é o Advogado que não acorda com o advogado da outra parte, para que ambos tirem proveito junto aos clientes; são muitos poucos ? Não é ai, que estão os desastres, onde o direito paira na anarquia da democracia ?

Passo abaixo alguns textos, da tese do Dr. Ângelo Torres, com algumas alterações, e suprimentos, que esclarece alguns pontos importantes, para que o Senhor incremente a sua cultura no Positivismo:

" A extensa obra de Augusto Comte apresenta duas partes, uma abstrata e outra aplicada. A primeira parte é preparatória, como fundamento da segunda, a Ciência Política, verdadeiro e importante objetivo final de seu plano de trabalho. Essa segunda parte, voltada para aplicação, deveria indicar em pormenor a necessidade e as condições de um regime de governo e de uma filosofia política para a reforma da sociedade humana na modernidade, através do consenso filosófico.

O coroamento político da filosofia enciclopédica de Comte, sob a forma de um governo presidencialista, foi implantado no Brasil, a partir de 1891, já no regime republicano, no estado do Rio Grande do Sul, por longos 40 anos, o que constitui uma experiência política única no mundo. Até mesmo a liberdade profissional completa foi implantada, como uma das muitas formas de libertação recomendadas pelo filósofo, livrando o estado sulino dos diplomas oficiais e de seus privilégios, considerados como um dos muitos modos da iníqua espoliação feita pelos poderosos contra a classe trabalhadora e contra a sociedade em geral.

Foi realizada, também sob a aprovação eleitoral, dentro do princípio presidencialista, a elaboração das leis pelo executivo, sem assembléia parlamentar, pela consulta obrigatória e transparente diretamente ao povo, por longo período, nos meios de comunicação. A corrupção política imputada ao parlamentarismo foi assim afastada. Mas essa mudança sofreu naturais protestos dos numerosos beneficiários de privilégios extintos, às vezes mesmo por violentos e sangrentos atos pouco democráticos, por meio da agressão da revolta armada, por duas vezes malsucedida. No âmbito do governo federal da nova república brasileira também instituições recomendadas por Augusto Comte foram implantadas, entre elas a importante liberdade religiosa completa.

Tanto o regime político do Estado do Rio Grande do Sul, como as instituições do governo federal, orientados pela doutrina sociológica comtiana estão até hoje em debate, sob as mais duras críticas. Para alguns, essa influência foi de caráter progressista, para outros, foi uma orientação maléfica, sendo que há quem discuta até se houve ou não houve a república... A participação nesse debate, impossível de ser feita nesta dissertação, exige, no entanto, o estudo e o conhecimento da complexa e extensa obra de Augusto Comte. Sem esse saber, será impossível identificar quais ações teriam sido criação de políticos locais ou tenham sido aplicações práticas de pormenorizadas recomendações de Ciência Política, plenamente pensadas e redigidas em Paris, no bureau do filósofo do positivismo. É um caso de ação da cultura francesa à distância, em que se veria o intenso brilho de Paris, como capital da cultura humana, atravessando o Atlântico, até alcançar o Brasil.

Seria de interesse pesquisar como jovens brasileiros terão chegado a ler a difícil obra filosófica e política de Comte, como interpretaram-na e como chegaram a aplicá-la à praxis, no momento mesmo da grande transformação política da monarquia para a república.

Para a glória da filosofia moderna esse fato constitui até um generoso exemplo de como a teoria filosófica universal de um puro pensador pode modificar distintamente, a longa distância, após muito tempo, pela via racional, a vida política de um país e, também, mesmo, a vida de vários deles. E como, pelo contrário, a resistente reação conservadora e retrógrada impediu, tenazmente, na Europa, a quebra de privilégios e a derribada de mitos e superstições.

Para elaborar a base abstrata da técnica política, capaz de lhe dar a certeza científica da previsão, pretendeu Comte desenvolver uma ciência preditiva da sociedade, a sociologia. Para começar essa pesquisa, fez o filósofo uma avaliação dos progressos científicos até sua época, procurando tirar dos primeiros e rudimentares progressos das ciências então conhecidas a metodologia científica e sociológica, de que resultou uma filosofia, no Cours de Philosophie Positive. Seria obter a revolucionária filosofia demonstrável e discutível, a partir da ciência. Seria, em caso de sucesso do pensador, a filosofia de caráter necessário para a vida na modernidade.

O Cours de Philosophie seria a partida para a grande mudança na cultura humana, com a pretensão de ser a maior revolução filosófica em toda a história social da humanidade. Consistiria em procurar o saber firme, seguro, posto rigorosamente sobre a base sólida do saber de observação, por meio de uma indução cognitiva haurida no conteúdo e na evolução do método científico. A revolução compreenderia uma rejeição radical, rigorosa da "filosofia" tradicional fundada na intuição não-sensorial, a partir do a-priori do teísmo ou da metafísica ontológica. Porque só assim seria obtido o saber cartesiano claro e distinto, resistente à ação corrosiva da dúvida sistemática, capaz de realizar previsões certas e úteis, dentro da desejável precisão possível.

A pretensão do pensador foi, apoiado nessa pesquisa, a de elaborar uma sociologia abstrata, na busca de leis infalíveis no âmbito dos fenômenos sociais, e não das "coisas" ou do ser, sempre para guiar, pela previsão, a ação política. Uma ciência que não poderia ser somente uma simples e empírica descrição sistemática dos fatos sociais em sua concretude. Deveria ser capaz de prever o regime político a ser estabelecido pelos politólogos na práxis. O que só poderia ser realizado pela determinação segura do saber científico. A leitura cuidadosa do texto de Augusto Comte indica que teria ele comprovado ser condição necessária, cientificamente estabelecida, para o governo, a mais ampla liberdade dos humanos. E teria sido por uma extensa indução histórica que Augusto Comte se tornaria candidato a fundador da sociologia e primeiro dos sociólogos, na pretensão de determinar a estrutura e o desenvolvimento da sociedade, por meio do que chamou o método da filiação histórica. A primeira versão da sociologia comtiana ocupa o quarto, o quinto e o sexto volumes do Cours de Philosophie, sua obra "fundamental". Mas a sua composição "principal", com a versão completa da sociologia abstrata seria mostrada no Système de Politique Positive, do primeiro ao terceiro volume. Essa nova ciência constituiria a base do ambiciosamente abrangente sistema gnosiológico da original, complexa, incompreendida e enciclopédica filosofia de Augusto Comte. Será, de fato, essa a filosofia enciclopédica da liberdade?

Notar com atenção que este trabalho de dissertação não pretende fazer a crítica e avaliação da obra do filósofo, para atestar a validade de sua filosofia ou a sinceridade de seu liberalismo, se ele existir. Apenas cabe aqui explicitar suas intenções e auxiliar a compreensão de sua comunicação, deixando para outros mais capazes em outra ocasião essa tarefa maior.

Nos quatro volumes do Système de Politique Augusto Comte é que proporia a separação da psicologia da sociologia, até esse texto apresentadas em conjunto, sem identificação distinta. A partir do segundo volume da Política, considerou ele a PSICOLOGIA autônoma, como ciência abstrata independente. Denominou-a de "MORAL TEÓRICA", para que não fosse confundida com a psicologia de seu tempo, que procurava estudar a "alma" humana, tida como uma inacessível entidade metafísica, a ser estudada por meio da introspecção. Comte afirmou ser impossível e inexistente essa antiga psicologia. Mas o novo apelido de "Moral" para a ciência do comportamento humano individual, para a psicologia, confunde a nova disciplina com uma vaga normatização ética, dificultando o seu reconhecimento como ciência, e constituindo um obstáculo invencível para identificar a moderna psicologia de Comte como ciência de previsão. Contém essa elaboração do filósofo uma teoria científica da cognição. Aí é elaborado o estudo pormenorizado das funções cerebrais elementares simples, que constituem os três grandes setores psicológicos das funções afetivas, da capacidade intelectual e da preparação mental da atividade. Goblot, severo crítico, afirma ser Augusto Comte merecedor de estar entre os grandes mestres do pensamento humano, lamentando que sua psicologia tenha ficado ocultada até ser reencontrada pelos estudos contemporâneos. Em outras palavras, alguma razão fez esconder a criação da nova psicologia : sua leitura no Système de Politique ficou desconhecida, em contraste com a grande divulgação do Cours de Philosophie Positive. A psicologia comtiana pretenderia, como toda ciência positiva, obter a previsão por meio das leis, no caso as leis que regessem o comportamento humano: não deveria ser essa psicologia somente uma disciplina descritiva, obtida apenas por uma rústica e empírica pesquisa concreta.

A obra de Comte, em sua elaborada formação abstrata, pretende mostrar-se, portanto, primeiro como uma filosofia, para então elaborar uma sociologia e depois, mais tardiamente, uma psicologia. A ciência política, voltada para a práxis, viria a apoiar-se nessa preparação teórica. Mas, tanto a teoria como a prática, teriam o caráter de previsibilidade. Seria, portanto, uma nova forma de filosofia, enciclopédica, lógica, discutível, aberta, mas voltada para a ação efetiva, para resultados bem definidos e seguros de previsão. A filosofia de Augusto Comte pretenderia ser a filosofia da previsão científica e da ação, consistindo, primeiro, de uma extensa preparação abstrata, e, depois, de uma aplicação prática, para ação imediata, que vale tanto para a política, para a arte, para a educação e para a ética, para a política, para a atividade produtiva e para a técnica em todas as suas especializações. Perguntar-se-á --- um plano tão vasto, terá sido bem sucedido ? Certo é que um plano como esse, terá, correspondendo à sua grandeza e complexidade, uma vastíssima dificuldade de comunicação. Será, talvez, devido à chocante originalidade e grandiosidade dessa obra filosófica, que Stuart Mill afirma ser Augusto Comte tão grande como Descartes e Leibniz, apenas sendo mais extravagante.

Serão esses atributos extremados que farão, do filósofo, um pensador muito odiado por alguns e por outros até adorado, religiosamente adorado, posto em altares. De uma forma ou de outra, fora do comum, seja para o bem, seja para o mal. Será um mito, uma figura humana de características extremas, inesquecível, admirável, irremovível da memória filosófica universal.

A CIÊNCIA POLÍTICA de Comte, como aplicação prática de sua obra abstrata, está posta em pormenor no quarto volume do Système de Politique. Mas essa elaboração, que poderá ser considerada como um monumento erguido à realização da liberdade na práxis ou da efetivação da mais rígida ditadura tirânica, apresenta-se travestido por uma linguagem aparentemente mística, quase completamente ilegível, tanto para os revolucionários como para os conservadores. Decerto esse tratado de politologia poderia ser lido e teria mais repercussão se fora editado em separado e sem a dificuldade da forma de seu léxico característico. Caracteriza essa Ciência Política a pretensão de opor uma interdição rigorosa do comando das opiniões pelo poder político material, obrigando-o a manter as mais amplas liberdades, como a de imprensa, de ensino, a liberdade profissional e religiosa. O poder político ficaria subordinado ainda ao controle, julgamento e às penalidades severas de atribuição do poder autônomo de uma assembléia orçamentária independente e eleita por meio do sufrágio democrático direto. O poder político normativo do governo ficaria reduzido, então, ao Estado mínimo, de custo reduzido, apenas no controle das coisas materiais, do prosaico, livre da prepotência e do privilégio dos nobres, dos teóricos, dos religiosos oficializados e dos demais privilegiados. E seria assim que, modernamente, esperaríamos que deve acontecer numa (república democrática) Pronunciadura Republicana.

" A resposta estará na pesquisa da dificuldade semântica do texto do filósofo: --- estará no estudo na criptografia comtiana.

O livre exame, como preceito da Reforma protestante para leitura bíblica, é analisado por Comte como um sintoma grave do estado de decadência do papado, ou seja, como a verificação da crise da modernidade, tomada como lamentável a ruptura.

Essa é a chamada "liberdade de consciência", considerada por Augusto Comte como a base do necessário progresso da modernidade. Essa liberdade foi, sim, inutilmente combatida pelos papas, tentando evitar a derrocada de suas crenças pelo estudo direto individualizado da multiplicidade das teses da bíblia, ameaçador da autoridade hierárquica da fé. Contra essa liberdade usaram os papas a força de sua autoridade moral, e, mais tarde, em sua falta, até a força da violência, quando o sacerdócio aliou-se ao poder temporal da realeza, provocando a cruenta Santa Inquisição. (Politique, IV, appendice,18)

Essa análise condenando a liberdade de consciência usada contra o catolicismo é um verdadeiro texto criptografado, muito repetido por críticos apressados, de conseqüências interpretativas enganosas. Logo implicando erroneamente em que, para Comte, a liberdade de consciência seria um terrível erro a ser sempre combatido...

Pelo contrário, por sua doutrina demonstrável, afirma Augusto Comte apresentar ele a única defesa permanente da liberdade. E, ainda, afirma ser ele o único pensador que elabora uma doutrina em forma de sistema na defesa da liberdade de opinião, de consciência e de livre exame. (Politique, I, 122)

Se assim acontecer, será enorme engano pensar que Comte seria de fato o maior inimigo das liberdades, o totalitário do século XIX, prócer eminente do nazismo.

Será necessário pesquisar com cuidado o texto comtiano para não cair nessa armadilha e dela tirar conclusões enganadas. E, se não houver grave erro ou omissão de nossa parte, muitos estudiosos de renome já teriam chegado a produzir, dessa forma, análises de má qualidade, ao cair nesse lamentável e indesculpável engano semântico, nessa criptografia da liberdade de consciência.

Note-se que o outro nome da plena liberdade de pensar no texto de Augusto Comte chama-se

"separar os dois poderes" tanto no estudo abstrato da sociologia de Augusto Comte como na aplicação de sua ciência política.

Significa claramente retirar do governo material o governo das opiniões e do governo espiritual o poder de comando filosófico pela violência ou pela riqueza. Decerto uma ciência política que considerasse as opiniões e a religião como o ópio do povo, resultaria sem remédio numa tirania liberticida. E do mesmo modo pode-se questionar se conduzirá à tirania toda ciência política incapaz de identificar claramente esses poderes nem se proponha a separá-los.

A "separação dos poderes" em Montesquieu não corresponde a essa libertação comtiana do pensamento filosófico em política. A divisão de poderes nesse caso pretende o controle democrático do poder pelo fracionamento do poder. Não se refere à libertação da opinião, ao livramento da filosofia. E Comte perguntaria, desconfiando da fórmula expressa por Lincoln de "governo do povo, pelo povo, para o povo", será que poderemos ter o controle democrático do poder, para obter e manter as mais amplas liberdades por meio de outra forma de governo?

Ao estudar como se dá a convergência dentro da sociedade, o filósofo enfatiza a maior dificuldade da associação humana: conciliar o concurso e a independência. Em outras palavras, tentaria Comte compreender como os humanos em liberdade vivem em convergência em sociedade, sendo independentes, não coagidos pela violência.

O problema fundamental da sociedade, de acordo com Comte, estaria em manter o concurso assegurando a liberdade, estando a solução desse problema num corpo de doutrinas, de pensamento, num ethos que desenvolva primeiro o sentimento social, o altruísmo, e depois a confiança, a fé.

Lê-se no texto original do filósofo, com sua terminologia específica:

"Une conciliation permanente entre le concours et l’indépendence constitue le noeud fondamentale de la sociabilité, dont la religion peut seule instituer le dénouement. (Politique, IV, 34)

Explicitamente: só a religião pode desfazer esse nó fundamental em sociologia!

É a expressão decisiva de que a solução única do problema fundamental da sociedade, a harmonia entre a convergência e a liberdade só poderá ser instituída pela filosofia, pela gnosiologia. E essa solução filosófica implicaria na mais ampla liberdade!

Não está impressa a palavra "liberdade". Mas lê-se liberdade na independência, como sinônimo perfeito. Não se trata aqui de obter o concurso pela força ou pela ameaça, mas pelo amor e pela fé.

Volte-se, e leia-se de novo:

pelo amor e pela fé!

Outra vez o compilador não poderá ler nem anotar a palavra liberdade no texto comtiano, embora o conceito de liberdade claramente esteja contido no contexto, no próprio espírito da comunicação. A explicação das condições de afeto e de razão na unidade humana, em sua coerência, estão na teoria da unidade, nas primeiras linhas do segundo volume do Système de Politique, como já vimos.

O biógrafo de Comte, Henri Gouhier, pareceria ter razão ao dizer que

"Comte é um liberal fanático, adversário impiedoso de Marat e de Robespierre, de Bonaparte e de Luiz XVIII. Para Comte a liberdade é um absoluto."

Fica claro, na letra do Système de Politique, que, para o pensador, a doutrina abstrata, bem como sua aplicação política tem embasamento na disciplina consentida da doutrina filosófica, jamais imposta, mas amplamente elaborada em todos os aspectos da vida humana, nas afeições, na razão, na práxis política e técnica, no formato de uma gnosiologia liberal, para regular a modernidade em nova civilização pacífica e industrial.

A proposta do pensador, acertada ou não, coloca o desafio maior ao filósofo de nossos dias:

dirigir a sociedade somente por suas opiniões, sem violência, sem a tutela quer do Estado, quer da violência ou da riqueza, mas somente pela competência e prestígio, moral e intelectual do filósofo.

Em outras palavras, por meio da mais pura, da mais desinteressada filosofia!

Nesse aspecto básico, o sistema comtiano fica parecendo aos revolucionários do progresso pela violência política apenas uma proposta "romântica", irrealizável, uma vez que só conhecem a solução tirânica por meio da força militar fardada de um governo totalitário.

Esse debate está e continua na ordem do dia: escolher entre a tirania e a filosofia da liberdade.

E descobre-se então a dificuldade semântica da complexa pregação em favor do poder da opinião, do poder do consenso. Essa é a doutrina de Augusto Comte, no estudo abstrato do fenômeno da coesão social. Sistema de pensamento que conclui pela necessidade da liberdade, isto é, por ser inevitável e indispensável a disciplina livre, consentida, tida pelos totalitários como uma "política ...apenas romântica".

Será mesmo que estamos presenciando uma grande dificuldade na leitura do texto original comtiano? E exatamente na importantíssima, democrática e original teoria da liberdade, com validade para os nossos dias e para todos os tempos. Esse escolho semântico alterado constituiria a criptografia romântica.

Portanto, no texto de Comte parece permear a preocupação em manter as maiores liberdades públicas, ao mesmo tempo em que pesquisa uma forma de realizar a harmonia filosófica pela afetividade e pela razão, que livremente regule a vida humana em sociedade pelos mesmos meios liberais historicamente registrados em cada civilização anterior pela religião. .

A pretensão se torna regenerar a sociedade pelo estabelecimento de uma comunidade de filósofos, gnosiólogos, sem poder nem riqueza, de caráter teórico, por meio do ensino de princípios de ampla aceitação. Seria realizar o governo das opiniões em forma de consenso, em plena liberdade, para regular a ação da política material.

Supondo que o problema da crise da modernidade tenha sido criado pela derrocada do sistema de gnosiologia da medievalidade, pretendia Comte que o problema sendo filosófico, sua solução deveria ser filosófica. Ou seja, primeiro o pensador identifica a crise de nossos dias como sendo de caráter filosófico. Em seguida pretende que seja essa crise resolvida nos mesmos termos, filosóficos, isto é, no âmbito de uma solução doutrinária, ou seja não apenas política, não violenta.

A solução, portanto, do problema da modernidade, não estaria somente no âmbito do governo temporal : principalmente a solução da crise estaria implicada na esfera filosófica.

Por essa razão propõe o autor a instituição de um culto ou adoração de caráter socialista ou social, sem a tutela ou incentivo do poder material. O culto deveria ser livre, tanto para o indivíduo, para a família, a pátria e para a comunhão internacional.

Não se haveria de confundir esse culto religioso sincero e em liberdade com programas políticos despóticos destinados à propaganda de regimes de força.

Essa forma de controle social livre pretenderia o filósofo ter visto sempre nos sistemas de gnosiologia de todo o passado, onde os filósofos ou sacerdotes obtinham, com formas de pensar diferentes, a cada época e lugar, a mesma coesão social. Escreve então sobre a consagração religiosa que

"pendant le déclin du catholicisme ce privilège (du sacerdoce) fut de plus en plus regardé comme une usurpation envers l’autorité civique, qui, finalement, domina partout l’influence ecclésiatique, pour les trois phases principales de la vie privée, la naissance, le mariage, et la mort." (Politique, IV,122)

Essa verificação feita no texto original de Comte indica a extensão de suas especulações na esfera da religião, que resulta numa das maiores dificuldades semânticas na sua linguagem, que assim parece completamente cifrada, em meio a sua aparência teista.

Entraria em debate, portanto, a esfera do sentimento, da afeição, na solução do problema político e filosófico.

A complexa doutrina de Comte apresenta então um aparente misticismo e espiritualismo: Fala o autor na "espiritualidade" de sua proposta da "santidade" da ciência :

"Il faut donc que d’abord le coeur règle l’esprit, afin que leur harmonie discipline ensuite l’opinion public, d’où résulte une force morale destiné à perfectionner les impulsions individuelles. Ce complément général de la spiritualité positive suppose, avant tout, des sentiments convenables, qui prévalent aisément, chez les âmes les plus imparfaites, envers la conduite d’autrui. Mais son nom usuel doit suffisamment rappeler que cette force exige aussi des pensées communes,d’après lesquelles on puisse juger chaque cas."

"Ainsi conçue, la science acquiert une sainteté jusqu’allors impossible, en consolidant à la fois la liberté et vraie moralité" (Politique, IV, 167)

Refere-se aqui o autor à subordinação da inteligência, da razão, aos sentimentos e às necessidades práticas da sociedade, quando a luz dada pela ciência se tornaria "santificada" por sua destinação ao bem comum. O que teria ocorrido sempre no passado, dentro de cada civilização.

Esses criptogramas é que conduzem a enganosas interpretações de considerar Comte como "retornando ao misticismo" de sua infância, ou até numa visível prova de demência "senil" antes dos cinqüenta anos de idade.

Além da criptografia pode notar-se a preocupação do autor em sua doutrinação com a liberdade. E também com a semântica do nome de "opinião pública" livre.

Assim nasce no texto comtiano o criptograma do misticismo.

O problema fundamental em política, do recrutamento, seleção e treinamento dos governantes, é posto na ciência política de Augusto Comte como e estudo da transmissão do poder e da propriedade. Além das dificuldades semânticas nesse assunto, outros temas deveremos abordar, como a tirania, a interpretação da liberdade em Hobbes, o empirismo anti-filosófico e a origem da crise política. Escola de Estadistas Republicanos.

O colégio filosófico libertado, imaginado por Comte para a direção das mentes humanas, deveria ficar, por sua recomendação expressa, sempre isento da opressão temporal. (Politique IV, 259)

Para a solução do importante problema da transmissão das funções e do capital nas classes ricas, no patriciado, também será à liberdade que recorrerá o autor; recomendando para tanto a liberdade de testar e a liberdade de adoção com a livre indicação do próprio sucessor:

"Quant à hérédité sociocratique des offices et des capitaux, il suffit ici de compléter la loi fondamentale, établie dans mon volume statique, sur le libre choix du successeur, sous la sanction du supérieur." (Politique, IV,333)

O seu "volume estático" refere-se ao segundo volume da Política Positiva, onde apresenta o estudo da estrutura da sociedade. Na instituição da teoria da família, escreve o autor:

"D’antiques exemples de monstrueuse inimitié manifestent combien la fraternité fut altérée par la transmission héréditaire des fonctions sociales. Il en est de même, à un moindre degré, quand l’hérédité se borne à la richesse. Mais, en rapportant toujours la famille à la société, le régime final dégagera l’autorité paternelle de toute entrave inspirée par l’égoïsme domestique. Pleinement libres de tester sous une juste responsabilité morale, les pères pourront alors transmettre hors de la famille les capitaux acquis ou conservés, même indépendamment de l’adoption." (Politique, II,199, 200)

Chama o autor de sociocrática a transmissão do poder e da propriedade em vista do bem da sociedade, e não dentro do critério familiar, em favor dos descendentes, o que tem origem no regime de castas na teocracia antiga. Mas usou o termo hereditariedade, que, para nós, é unicamente usado com o significado teocrático. Sobre o tema retorna o filósofo no mesmo segundo volume, na p.406, no estudo das classes produtoras. O Bem Individual é da Família; mas o Bem construido Socialmente é da Sociedade - segundo Aristóteles - O Capital tem a sua Origem e Aplicação no Social.

A expressão "regime final" não tem o sentido de colocar um limite para o progresso, mas chama assim o autor o regime proposto como o fim de uma série evolutiva, sendo o começo de outra civilização, cuja característica seria a atividade pacífica, em constante aperfeiçoamento. Não se trata do fim da história.

Essa proposta de alteração do processo de sucessão de bens e de funções é fundamental em política, com significativa conseqüência num regime em que o Estado é posto como mínimo indispensável e onde haveria concentração crescente dos meios de produção nas mãos do patriciado cada vez mais reduzido, se o futuro confirmar a visão de Comte.

Na ciência política comtiana se faria a socialização do empresário e não a socialização dos meios de produção. Deve-se notar que o filósofo usa sempre o nome de patrício para designar o chefe prático, detentor da riqueza, considerado nos três setores da economia, da indústria agrícola, extrativa e manufatureira, do comércio e do banco.

Mas a palavra liberdade, de forma explícita, pode aparecer na escrita de Comte:

"Une pleine liberté d’exposition, et même de discussion, est d’abord indispensable comme garantie permanente contre la dégénération, toujours imminente, d’une dictature empirique en une tyranie rétrograde."(Politique,IV,379)

Se assim foi, a " ditadura" - , como definida por Comte, em sua semântica alterada, não seria, em nossos dias, a ditadura, a tirania. Logo, ditadura não seria ditadura ou melhor tirania! Vide esplicação sobre a palavra ditadura, infezlismente, termo mau empregado por Comte. Vide Nota no final do texto.

Não seria uma ditadura como todos entendemos hoje, com supressão das liberdades, numa verdadeira tirania. Trata-se, sim, do presidencialismo democrático, e, até mesmo eleitoral!

O autor compara a proposta política de Hobbes, de disciplina puramente material e amplas liberdades civis, com o regime por Comte proposto. E refere-se a Frederico II da Prússia, como um exemplo, por todos conhecido, de governo com liberdade, embora mesmo sob um regime absoluto, tal como um imperador "democrata".

Será curioso pesquisar se, na doutrina de Hobbes, por sua posição anti-espiritualista, terá sido apresentado também falsamente como adversário da liberdade, numa distorção da leitura de seus textos, numa deformação semântica hobbesiana. E se, paradoxalmente, essa distorção terá origem exatamente vinda de grandes inimigos da liberdade, de adeptos de alguma forma pouco caridosa de doutrina fechada de espiritualismo. No entanto, é Hobbes reconhecido, apesar de sua falta de piedade teísta, com muita razão, como precursor do liberalismo ...

Não só Comte, portanto, teria sofrido com a maldição criptográfica. O viés interpretativo também afetaria a leitura do materialista Hobbes na visão da bibliografia dominada pelo espiritualismo conservador, por muito tempo aliado ao despotismo político desde a retrogradação de Napoleão.

Com essas circunstâncias, gera-se a grande dificuldade semântica que chamaremos de criptografia do autoritarismo.

Ao concluir sua obra principal, o Système de Politique, escreve Comte:

"En aspirant à la réorganisation matérielle isolément de la reconstruction spirituelle, l’empirisme pratique devient plus vain et plus perturbateur que l’empirisme théorique qui s’efforce d’instituer la science indépendamment de la philosophie, ou celle-ci sans la religion." (Politique,IV,532)

Para entender essa crítica ao "empirismo" de ordem prática e ao "empirismo" de ordem teórica, torna-se necessário saber o que significa para o autor a palavra "empírico". O conceito de empírico para Comte é definido pela falta de articulação com uma doutrina mais geral. O empírico seria o atributo oposto ao filosófico, ao conceito encadeado a um sistema, a uma síntese, sendo, portanto incapaz de perceber o conjunto. O saber empírico seria exemplificado pelo conhecimento de que um balão de ar quente sobe no ar e não saber que se trata da mesma relação dada pelo princípio de Arquimedes, de flutuação de um corpo num líquido.

O empirismo prático consistiria então pretender reorganizar a sociedade sem conhecer a teoria sociológica da liberdade espiritual, o que é comum ocorrer com os políticos. Certos teóricos políticos até negam existir uma filosofia política, afirmando que toda doutrina política seja uma falsa ideologia, já que sua própria proposta é a única válida.

O empirismo teórico é referido como a tentativa de fazer ciência sem filosofia e fazer filosofia sem religião.

A solução comtiana, portanto, seria genuinamente filosófica, e, por conseqüência, completamente liberal. Por não pregar o uso da coerção.

Eis ai a criptografia do empirismo.

A opressão pelo governo temporal, como característica nefasta, como doença da modernidade, é visto por Comte, como a decorrência do desmoronamento do feudalismo e da doutrina religiosa correspondente:

"Je le répète, tout ce qui est arrivé a du arriver, et je suis certainement aussi éloigné que personne de tout regret stérile sur le passé. Mais qu’il me soit permis d’observer, avec le grand Leibnitz, le fait de l’importante lacune laissée dans l’organisation européenne par la dissolution inévitable de l’ancien pouvoir spirituel, et d’en conclure que, sous ce premier rapport, l’établissement d’un nouveau gouvernement moral est impérieusement réclamé par l’état présent des nations civilisées.

La décadence de la philosophie théologique et du pouvoir spirituel correspondant a laissé la societé sans aucune discipline morale. De là cette série de conséquences que je marque dans l’ordre où elles s’enchaînent mutuellement.

1. La divagation la plus complète des intelligences.

2. L’absence presque totale de morale publique.

3. La prépondérance sociale accordée de plus en plus, depuis trois siècles, au point de vue purement matériel, est encore une conséquence évidente de la désorganisation spirituelle des peuples modernes.

4. Je dois indiquer enfin comme dernière conséquence générale de la dissolution du pouvoir spirituel, l’établissement de cette sorte d’autocratie moderne qui n’a point d’analogie exacte dans l’histoire, et qu’on eut désigner, à défaut d’une expression plus juste, sous le nom de ministérialisme ou de despotisme administratif. Son caractère organique propre est la centralisation du pouvoir poussée de plus en plus au delà de toutes les bornes raisonnables, et son moyen général d’action est la corruption systématisée. L’une et l’autre résultent inévitablement de la désorganisation morale de la société. (Politique, v.IV, Appendice,184 e seg.)

Essa análise severa da autocracia moderna, indica, como já vimos antes, a origem filosófica, para Comte, desse mal. Confirma, também, o ânimo grandemente liberal do filósofo. O que leva a pensar que a acusá-lo de autoritarismo não passe, de fato, de um engano semântico, de uma leitura criptográfica.

Notar aqui, como o autor faz o crédito de idéias que emprega, citando Leibniz, o que mostra o seu hábito de honestidade intelectual, que, por outro lado, torna o texto mais sobrecarregado com tais indicações.

Comte mostra, já nesse escrito de juventude, em 1826, aos 28 anos, como relacionava o problema filosófico ao governo político, que até mesmo no caso, é o governo da sociedade pela religião, por meio do consenso, no âmbito intelectual e afetivo, sempre longe da opressão.

Temos, portanto, neste terceiro capítulo, examinado alguns dos mais importantes obstáculos postos na leitura do texto de Augusto Comte, na aplicação de uma construção filosófica extensa e demorada na elaboração de uma nova Ciência Política.

Corresponde, esse estudo, a um convite para a leitura e a crítica da obra original do filósofo, para confirmar ou não seu caráter liberal. Será de fato, a ciência política de Comte autoritária ? Como explicar as lutas dos positivistas brasileiros pela libertação dos negros e dos índios ? Como explicar as numerosíssimas intervenções do Apostolado Positivista em favor das diferentes formas de liberdade, até mesmo ao defender a própria Igreja Católica, ameaçada de perder a propriedade de suas igrejas e de seu patrimônio predial ?

Augusto Comte será, de fato, um fanático pela liberdade? A semântica de sua ditadura que não é ditadura; é sim uma DITADURA REPUBLICANA, Bem Público, é mesmo, uma dificuldade criptográfica. Como pode ser autoritário o filósofo tido como fanático pela liberdade ? Vamos substituir esta palavra Ditadura; por PRONUNCIADURA REPUBLICANA - ditador por Pronunciador.

Será difícil julgar se o debate filosófico, o choque de doutrinas, seria a única razão desse desvio semântico, ou mesmo se o preconceito metafísico participaria predominantemente na realização dessa distorção da imagem do filósofo e de sua doutrina. Mas, em todo o caso, o vocabulário de Comte e a complexidade de seu pensamento merecem um estudo mais cuidadoso.

CONCLUSÃO

A Criptografia de Augusto Comte

O percurso de nossa pesquisa permite concluir que a dificuldade em ler o texto do filósofo decorre principalmente de seu estilo próprio. Mas não só de seu estilo sintético e ao mesmo tempo inchado de referências e de idéias em geral originais, complexas e contundentes. Certas ou erradas, a serem aceitas ou contestadas. A dificuldade decorre também do ataque de sua doutrina a preciosos e importantes preconceitos seguramente arraigados desde a mais remota antigüidade.

A pesquisa permite encontrar várias formas criptográficas bem definidas no texto de Comte.

Além de revelar essa suspeita da mas inesperada criptografia, foi possível tentar descobrir algumas de suas causas e de suas variadas formas.

A surpresa decorre do fato bem conhecido de ser o autor um filósofo dono de uma obra séria, feita com cuidado, até ao excesso, no rigor das menores singularidades ou das mais amplas generalizações.

Não foi possível encontrar um deliberado propósito claro e distinto do autor em elaborar uma linguagem secreta. Augusto Comte, tal como Descartes, procurava escrever com nitidez para atingir a opinião popular. Em especial procurava apoio na opinião dos trabalhadores e das mulheres, não deformados em sua formação por preconceitos escolásticos e acadêmicos. Eram os únicos em quem confiava para desenvolver a revolução filosófica "romântica", sem violência, que pretenderia implantar na doutrina e na práxis de modo afetivo e intelectual, sem coerção.

Mas verdadeiros enigmas foram mostrados no seu texto. Embora colocados sem a menor intenção criptográfica, sua decifração quase sempre foi impossível a muitos de seus leitores.

Alguns criptogramas são apenas expressões mais difíceis, referências implícitas, conceitos complexos, novos. Foram aí postos pelo próprio autor, sem o propósito de esconder seu pensamento.

Pelo contrário, o autor buscava expressá-lo claramente, mas de forma sucinta, confessadamente feita às pressas.

Verdadeiros enigmas são os que resultam da deformação de sentido dada a palavras comuns usadas em significação diversa da convencionada. Essa alteração semântica, embora sempre justificada, torna o texto enganoso, criptográfico, no sentido aqui nós estabelecido.

Outros enigmas, no entanto, são postos no texto comtiano, ao correr de leituras descuidadas, em falta de atenção, em pesquisas incompletas ou até tendenciosas, a deformar o pensamento original do filósofo. Essa prática intelectual acarreta, por vezes, a qualidade inferior de muitas pesquisas e de muitas interpretações.

A leitura do texto original dos filósofos merece, portanto, ser em geral incentivada. Um dos critérios de qualidade nos estudos filosóficos deve ser a indicação distinta e confirmada do número da página no original e não só o debate erudito, por vezes elegante, mas estéril, vazio, baseado numa hermenêutica artificial, a partir do texto nem sempre fiel de comentadores fantasiosos, eles também, por vezes exegetas de literatura de segunda mão.

A evolução do próprio pensamento do autor e de sua semântica contribui, no caso de Comte, ainda mais para o corte da comunicação. E os criptogramas indicados na pesquisa quase sempre resultam da criação de conceitos novos, complexos, estranhos ou exóticos, de significação em viés, ainda mais deformados pela alteração natural, imprevisível do léxico.

Pelos textos originais estudados e pelas enormes distorções feitas por seus comentadores fica bem clara e distinta a necessidade patente, para a leitura da obra de Augusto Comte, da explicitação sistemática de sua terminologia.

O procedimento do pensador em nada reprovável ao evitar neologismos, deu lugar a um curioso dialeto incompreensível, constituído de palavras comuns consideradas em conceituação diversa. Seria um dialeto criptográfico particular em filosofia.

Formou-se uma linguagem que jamais alerta o leitor com palavras estranhas. Seus termos são todos bem conhecidos. Mas ditadura não é ditadura; religião não é religião; rezar não é misticismo.

Essa dificuldade ficou bem caracterizada quando o estilo do autor foi considerado "anfibológico". E, com mais precisão, quando se percebe uma criptografia capaz de iludir a todos os leitores, sem distinção.

É o fechamento, não exatamente da doutrina, mas é o fechamento, pelo menos parcial, da comunicação.

A criptografia, no entanto, não é expressamente voluntária. O autor reconhece essa dificuldade e se penitencia da falha, justificada por sua pressa em criar o ambicioso sistema planejado. Uma vez conhecidas, as suas palavras apresentam uma certa elegância pedante, como afirma Littré. Seria pedante em sua dificuldade superior, agravada por uma complexidade sucinta. Mas elegante por sua ameaçadora e esbelta graça. Embora por vezes ilegível.

Talvez tão importante como a identificação e a ênfase na criptografia de Augusto Comte nesta dissertação terá sido a explicitação aqui realizada da grande teoria da liberdade humana, desenvolvida por Comte em forma de sistema filosófico, de filosofia da liberdade, pelo método cartesiano, demonstrável.

Essa original, mas pouco reconhecida e nunca mencionada teoria da liberdade resulta, como vimos, na sociologia de Comte, da constatação histórica, na política do ocidente medieval e moderno, da caracterização clara e distinta dos poderes sociais, com a rigorosa recomendação pelo pensador da separação do poder teórico do filósofo em relação ao poder material do goveno político. E de sua proposta liberal para resolver a grande e permanente dificuldade de compatibilização no grupo social da independência com o concurso. Ou seja, mantida a inarredável liberdade, mostrada com o caráter filosófico de necessidade, como poder-se-á obter continuamente o concurso, a convergência social.

O sistema proposto por Comte sofreu, no entanto, a ação de confrontos de grande monta. A história da filosofia no século XIX mostraria o despotismo napoleônico impondo um espiritualismo oportunista que assumiria o controle despótico do ensino e da pesquisa na universidade por mais de um século, resultando na padronização dos estudos sob a tutela ontológico-metafísica do Estado, que chega quase até nossos dias.

Se verdadeiro, esse fechamento teria sido, nessa visão, efetivado pela imposição pelo Estado de uma erudição intelectual espiritualista estéril aliada a uma política conservadora, resultando no expurgo imposto por Napoleão aos filósofos renovadores do pensamento e do ensino. Seria a vez do oportunismo político, aliado ao poder, quando Victor Cousin com seu ecletismo afasta o debate ao afirmar que a filosofia já está feita, não deve mudar.

O ensino na França, portanto, em grande parte, teria, desde então, passado a dar ênfase à interpretação metafísica do pensar, única permitida pelo poder político, de maneira clara ou disfarçada. Prevaleceria uma visão adequadamente hostil ao do iluminismo, aos enciclopedistas. E seria mesmo infensa à ciência e à técnica, à moderna filosofia da ciência e naturalmente à obra de Augusto Comte, tanto quanto à de outros renovadores. Por meio da liderança francesa, essa tendência teria passado a todo o ocidente, a todo mundo civilizado.

Se tal ocorreu, a universidade teria sido então empolgada por uma versão oficial do que se denomina contemporaneamente de "pós-modernismo", em versões por vezes lembrando um retorno ao obscurantismo antigo, com vestes revolucionárias de nossos dias, como diz Paolo Rossi.

Não coube aqui escolher entre o moderno e o pós moderno, entre o espiritualismo e o materialismo, ou ficar ecleticamente a meio caminho.

Será oportuno, agora, ter uma visão do que pesquisamos neste trabalho que teria a pretensão de salvar a verdade e restaurar a justiça na leitura da obra de Augusto Comte. A obra de sua vida, pretendendo fazer das ciências uma filosofia, elaborando a sociologia, postulando a psicologia científica abstrata e aplicando essa investigação polimorfa à prática política, para reestruturar o governo da sociedade humana. Desse labor resulta, afinal, uma teoria geral do saber humano: --- uma gnosiologia, uma enciclopédia

Como terá sido pesquisada a criptografia de Comte? Como sua filosofia tornou-se sujeita à criptografia? Antes de tudo teria sido indispensável conhecer a doutrina comtiana. Em seguida dever-se-ia conhecer como sua leitura foi feita, e quais as distorções havidas. Então seria a hora de ter uma noção dos erros mais comuns, e notar, entre eles, quais seriam os mais freqüentes e mais importantes.

Inicialmente procurou-se identificar o que fosse a criptografia comtiana, conhecendo-se seus exemplos A seguir buscamos registrar as mais importantes dificuldades semânticas no texto abstrato do filósofo. E vimo-las em sua desconhecida e importante teoria da liberdade, na religião que não é religião, nas suas definições e nas suas ambigüidades, no infeliz mas bem mascarado plágio de Saint-Simon, no afastamento do absoluto pelo relativo, no after-death, na grande gnosiologia. Mas espanto mesmo foi na constituição de uma nova causa final, uma nova teleologia!

Só um filósofo-mito poderia propor tão ambiciosa construção.

As dificuldades no texto aplicativo de Augusto Comte foram achadas na ditadura que não é ditadura, no autoritarismo inexistente do pensador que é um liberal fanático, na sua criptografada ciência política da liberdade, na democracia que não é democracia.

Esse foi o esforço realizado para ajudar na difícil compreensão da filosofia de Comte. Um esforço para colaborar na decifração de suas dificuldades redacionais e para vencer os obstáculos aí colocados pelas interpretações falsificadoras dos comentadores de segunda mão. Mas, por vezes, a forte complexidade do tema e sua extensão desmesurada parecia colocar-nos mal equilibrados no alto de uma esfinge, em risco de cair da imensa altura do pensar de Comte. O consolo só viria ao ver que estávamos sobre fortes e elevados ombros. Estávamos seguros, de pé sobre os ombros do grande pensador.

Decerto a extensa obra de Augusto Comte, mesmo marginalizada pela criptografia própria ou adquirida, terá saliente lugar na grande análise filosófica da atualidade, seja ela uma doutrina de liberdade e de altruísmo. Mas, para facilitar sua compreensão, a explicitação dessa grande dificuldade semântica torna-se imprescindível; a sua leitura no Original, ou ser doutrinado por um conhecedor realmente sabedor do assunto. "

** Quanto a Faculdade de Direito de São Paulo e o Positivismo, aconselho a leitura do Livro, História do Positivismo no Brasil, de Ivan Lins.2a Edição - Editora Brasiliana. Os professores da Escola de Direito de São Paulo na época da Proclamação da República, eram homens comprometidos com os grandes latifundiários - capitalistas-colonialistas e teologistas retrógrados da época do Império.

Sem mais para o momento, desejo-lhe

Saúde, com respeito e Fraternidade,

P. A . Lacaz / Positivista

Paulo, vai aqui um artigo do Prof. Miguel Reale, sobre o Positivismo na Faculdade de Direito de São Paulo.

Abração do Cássio.

ARTIGOS - APADDI

24/11/2001

O positivismo na cultura brasileira

Miguel Reale

A simpatia com que apresentei o positivismo integral de Paulo Carneiro (3/11) levou alguns leitores à conclusão de que eu formaria entre os que enaltecem o papel de Augusto Comte na história do Brasil, questão que tem dado lugar a opiniões antagônicas. A meu ver, no entanto, é preciso distinguir entre a contribuição do pensador francês à filosofia da ciência, que foi benéfica, e a sua desastrada influência nos planos religioso e político. Uma coisa, em verdade, é a doutrina positivista como fundamentação autônoma do conhecimento científico, com base na metodologia das ciências naturais que predominou na segunda metade do século 19, prolongando-se até a guerra de 1914, com os desenvolvimentos dados por pensadores como Stuart Mill e Herbert Spencer; e outra coisa são as concepções comtianas em matéria de religião e de política, as quais somente tiveram sucesso na América Latina, e no Brasil em particular. Num país como o nosso, que não passara pela dúvida metódica de Descartes, pelo ceticismo de Voltaire e muito menos pelo criticismo de Emanuel Kant, a teoria positiva teve o mérito de substituir o ralo ecletismo inspirado pela filosofia de Victor Cousin, que se opunha à tradição escolástica sem revisar as idéias dominantes em nosso cenário espiritual. Nesse sentido, pode-se dizer que o positivismo representou a forma de "criticismo" que começou a situar a inteligência brasileira no âmbito da modernidade, tornando-nos partícipes das idéias universais que tinham então a Europa como principal foco irradiador. Infelizmente, a outra e infeliz contribuição comtiana no campo político, caracterizada pelo fortalecimento do Poder Executivo em detrimento do Poder Legislativo, medrou no Brasil com tanta força que se tornou, por assim dizer, uma constante de nossa atormentada vida política, como passo a demonstrar. Em São Paulo o maior representante da filosofia de Augusto Comte foi o médico Luiz Pereira Barreto, que, entendendo serem as leis exclusivas do mundo físico, considerava a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco o templo remanescente dos "leguleios" perdidos em falsas abstrações metafísicas, à espera da redenção que só poderia resultar do triunfo da sociologia positiva. O certo é que o corpo docente da histórica Faculdade de Direito não acolheu a teoria política pregada por Augusto Comte, a qual redundava num autoritarismo que punha em risco os valores da democracia. Efetivamente, o autor do Système de Politique Positive, partindo da tese de que somente a sociologia, por ele fundada, estaria em condições de determinar as leis inflexíveis que regeriam a sociedade, concluíra pregando um governo liderado por filósofos positivistas, sem participação do eleitorado, a seu ver destituído da capacidade de escolha dos verdadeiros dirigentes sociais. Só se pode, pois, louvar a citada Faculdade de Direito por ter recusado apoio à sociocracia comtiana. Não faltaram, porém, adeptos da doutrina política positivista no meio do corpo discente, como foi o caso de Júlio de Castilhos, que foi quem introduziu essa ideologia no Rio Grande do Sul, nele se instalando por vários anos. Segundo aquele líder gaúcho, o governo deveria ser confiado a dirigentes selecionados, não pelo voto, mas por seu saber e experiência, com predomínio do Poder Executivo até o ponto de ter somente ele competência para dar início ao processo legislativo, restando ao Parlamento apenas o poder de fiscalização das propostas e atos governamentais. A Constituição do Rio Grande do Sul consagrou essa esdrúxula diretriz que conflita com o princípio da divisão harmônica dos três poderes estatais, não obstante deverem os Estados obedecer aos princípios consagrados pela Constituição de 1891. Foi, pois, graças a uma especiosa interpretação que o "castilhismo" se implantou nos pampas, sendo admitida a reeleição do presidente do Estado, o que permitiu a permanência de Borges de Medeiros por quatro décadas no poder. Não é estranhável, por conseguinte, que Getúlio Vargas, antigo secretário de Borges de Medeiros, viesse a instaurar, em 1937, o Estado Novo, fechando o Congresso Nacional, não por influência do fascismo, consoante se costuma dizer, mas sim em razão da posição de inferioridade do Legislativo no sistema político comtiano, como bem lembrou João de Scantimburgo em recente pronunciamento na Academia Paulista de Letras. Note-se que a Constituição de 1937 previa a eleição de uma Câmara de Deputados e de um Conselho Federal, em substituição ao antigo Senado, mas Getúlio Vargas jamais convocou a programada eleição indireta, concentrando em suas mãos todos os poderes da República. Não se pense, todavia, que a perniciosa influência positivista, na versão de Augusto Comte, tenha desaparecido de nossa experiência política, encontrando sempre adeptos no meio militar. Prova dessa triste herança tivemos quando o presidente Ernesto Geisel, em abril de 1977, decretou o recesso parlamentar, com base no Ato Institucional n.º 5, a fim de impor a reforma do Poder Judiciário tal como era por ele desejada. Note-se que não foi apenas no Brasil que vingou a idéia política comtiana, pois foi nela que, no meu entender, se baseou a fundação, no México, do Partido Revolucionário Institucional (PRI), uma contradição em termos, com laivos de influência marxista. Seu incontrastado poder durou até a penúltima eleição presidencial, com reiteradas proclamações, por parte de ilustres juristas, de tratar-se de agremiação de caráter legitimamente democrático... Também no Brasil o "castilhismo", que vem sendo estudado com acuidade por António Paim e Ricardo Velez Rodriguez, foi julgado compatível com a democracia, continuando a representar um papel significativo na configuração de nosso presidencialismo. É até mesmo possível afirmar que, enquanto nos Estados Unidos da América o regime presidencial não exclui a imensa projeção do Poder Legislativo, entre nós prevalece o primado do Executivo, sobretudo quando, graças a sucessivas e reiteradas medidas provisórias, se implantou o "presidencialismo imperial", caracterizado pela incessante atividade legislativa, último resquício da tradição comtiana. Miguel Reale, jurista, filósofo, membro da Academia Brasileira de Letras, foi reitor da USP E-mail: reale@miguelreale.com.br

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O Estado de São Paulo

-----Mensagem original-----
De: J.E.O.BRUNO <jeobruno@uol.com.br>
Para: AHIMTB <ahimtb@resenet.com.br>
Cc: Ana Maria Alonso <amalonso@uol.com.br>; Alberto Dines <dines@jb.com.br>; Antônio Ermirio de Moraes <aemoraes@ect.aluminiocba.com.br>; Danton Positivista <danton@arras.com.br>; Emmanuel Positivista <emmanuel.lazinier@mail.dotcom.fr>; Gilda Maciel de Barros <gnmdbarr@usp.br>; Igreja Positivista do Brasil <igrposit@arras.com.br>; IHGSP <ihgsp@bol.com.br>; Maurizio Marchetti <maurizius@uol.com.br>; Maurizio Marchetti 2 <maurizio@bestway.com.br>; Paulo Augusto Antunes Lacaz <lacaze@terra.com.br>
Data: Sábado, 23 de Fevereiro de 2002 11:11
Assunto: O positivismo na cultura brasileira

O positivismo na cultura brasileira

Miguel Reale

A simpatia com que apresentei o positivismo integral de Paulo Carneiro (3/11) levou alguns leitores à conclusão de que eu formaria entre os que enaltecem o papel de Augusto Comte na história do Brasil, questão que tem dado lugar a opiniões antagônicas. A meu ver, no entanto, é preciso distinguir entre a contribuição do pensador francês à filosofia da ciência, que foi benéfica, e a sua desastrada influência nos planos religioso e político. Uma coisa, em verdade, é a doutrina positivista como fundamentação autônoma do conhecimento científico, com base na metodologia das ciências naturais que predominou na segunda metade do século 19, prolongando-se até a guerra de 1914, com os desenvolvimentos dados por pensadores como Stuart Mill e Herbert Spencer; e outra coisa são as concepções comtianas em matéria de religião e de política, as quais somente tiveram sucesso na América Latina, e no Brasil em particular. Num país como o nosso, que não passara pela dúvida metódica de Descartes, pelo ceticismo de Voltaire e muito menos pelo criticismo de Emanuel Kant, a teoria positiva teve o mérito de substituir o ralo ecletismo inspirado pela filosofia de Victor Cousin, que se opunha à tradição escolástica sem revisar as idéias dominantes em nosso cenário espiritual. Nesse sentido, pode-se dizer que o positivismo representou a forma de "criticismo" que começou a situar a inteligência brasileira no âmbito da modernidade, tornando-nos partícipes das idéias universais que tinham então a Europa como principal foco irradiador. Infelizmente, a outra e infeliz contribuição comtiana no campo político, caracterizada pelo fortalecimento do Poder Executivo em detrimento do Poder Legislativo, medrou no Brasil com tanta força que se tornou, por assim dizer, uma constante de nossa atormentada vida política, como passo a demonstrar. Em São Paulo o maior representante da filosofia de Augusto Comte foi o médico Luiz Pereira Barreto, que, entendendo serem as leis exclusivas do mundo físico, considerava a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco o templo remanescente dos "leguleios" perdidos em falsas abstrações metafísicas, à espera da redenção que só poderia resultar do triunfo da sociologia positiva. O certo é que o corpo docente da histórica Faculdade de Direito não acolheu a teoria política pregada por Augusto Comte, a qual redundava num autoritarismo que punha em risco os valores da democracia. Efetivamente, o autor do Système de Politique Positive, partindo da tese de que somente a sociologia, por ele fundada, estaria em condições de determinar as leis inflexíveis que regeriam a sociedade, concluíra pregando um governo liderado por filósofos positivistas, sem participação do eleitorado, a seu ver destituído da capacidade de escolha dos verdadeiros dirigentes sociais. Só se pode, pois, louvar a citada Faculdade de Direito por ter recusado apoio à sociocracia comtiana. Não faltaram, porém, adeptos da doutrina política positivista no meio do corpo discente, como foi o caso de Júlio de Castilhos, que foi quem introduziu essa ideologia no Rio Grande do Sul, nele se instalando por vários anos. Segundo aquele líder gaúcho, o governo deveria ser confiado a dirigentes selecionados, não pelo voto, mas por seu saber e experiência, com predomínio do Poder Executivo até o ponto de ter somente ele competência para dar início ao processo legislativo, restando ao Parlamento apenas o poder de fiscalização das propostas e atos governamentais. A Constituição do Rio Grande do Sul consagrou essa esdrúxula diretriz que conflita com o princípio da divisão harmônica dos três poderes estatais, não obstante deverem os Estados obedecer aos princípios consagrados pela Constituição de 1891. Foi, pois, graças a uma especiosa interpretação que o "castilhismo" se implantou nos pampas, sendo admitida a reeleição do presidente do Estado, o que permitiu a permanência de Borges de Medeiros por quatro décadas no poder. Não é estranhável, por conseguinte, que Getúlio Vargas, antigo secretário de Borges de Medeiros, viesse a instaurar, em 1937, o Estado Novo, fechando o Congresso Nacional, não por influência do fascismo, consoante se costuma dizer, mas sim em razão da posição de inferioridade do Legislativo no sistema político comtiano, como bem lembrou João de Scantimburgo em recente pronunciamento na Academia Paulista de Letras. Note-se que a Constituição de 1937 previa a eleição de uma Câmara de Deputados e de um Conselho Federal, em substituição ao antigo Senado, mas Getúlio Vargas jamais convocou a programada eleição indireta, concentrando em suas mãos todos os poderes da República. Não se pense, todavia, que a perniciosa influência positivista, na versão de Augusto Comte, tenha desaparecido de nossa experiência política, encontrando sempre adeptos no meio militar. Prova dessa triste herança tivemos quando o presidente Ernesto Geisel, em abril de 1977, decretou o recesso parlamentar, com base no Ato Institucional n.º 5, a fim de impor a reforma do Poder Judiciário tal como era por ele desejada. Note-se que não foi apenas no Brasil que vingou a idéia política comtiana, pois foi nela que, no meu entender, se baseou a fundação, no México, do Partido Revolucionário Institucional (PRI), uma contradição em termos, com laivos de influência marxista. Seu incontrastado poder durou até a penúltima eleição presidencial, com reiteradas proclamações, por parte de ilustres juristas, de tratar-se de agremiação de caráter legitimamente democrático... Também no Brasil o "castilhismo", que vem sendo estudado com acuidade por António Paim e Ricardo Velez Rodriguez, foi julgado compatível com a democracia, continuando a representar um papel significativo na configuração de nosso presidencialismo. É até mesmo possível afirmar que, enquanto nos Estados Unidos da América o regime presidencial não exclui a imensa projeção do Poder Legislativo, entre nós prevalece o primado do Executivo, sobretudo quando, graças a sucessivas e reiteradas medidas provisórias, se implantou o "presidencialismo imperial", caracterizado pela incessante atividade legislativa, último resquício da tradição comtiana. Miguel Reale, jurista, filósofo, membro da Academia Brasileira de Letras, foi reitor da USP E-mail: reale@miguelreale.com.br

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